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5. Um Outro Olhar - Maria Cecília Correa de Faria(1)
Todos temos lido, ouvido, comentado, o assassinato do índio pataxó em Brasília por um grupo de adolescentes de classe média, filhos de funcionários públicos que vão de funcionários burocráticos até magistrados, genitores à serviço de um Estado Mítico.
Temos também nos fartado de ler sobre a influência da TV nos tempos de hoje, dos jornais escandalosos dos quais se diz que "se se torcer sai sangue", dos filmes de violência, como possíveis causas do ato... De certo modo, e em certas leituras tem-se a impressão de que falharam todos os dispositivos sociais de que dispomos, e que devemos correr para trabalhar, por exemplo, na campanha do desarmamento infantil - aquela que propõe que não haja revólveres de brinquedo...
Dessas leituras, fica patente que pertencemos a uma sociedade que pretende controlar, ou julga controlável o HOMEM, ou em linguagem atual, é possível e desejável sua formatação.
Trago más notícias: não acredito que isso seja possível, e tem mais, tenho a impressão de que se o fosse, seria para termos uma espécie de Admirável Mundo Novo, o que definidamente não quero para meus filhos ou quem quer que seja.
Aliás, a cidade na qual se deu o assassinato encampado pela mídia é justamente a cidade que no seu projeto arquitetônico esqueceu a dimensão humana e está afogada por cidades satélites, que denunciam, no seu não planejamento, a existência do HOMEM NATURAL não planejável, mesmo em tempos de DOLLY.
Que em 97, um índio/mendigo tenha sido queimado vivo - como na Europa, na idade média, a Inquisição fazia com os suspeitos de judaísmo - e que o ato, aparentemente incompreensível, não tenha sido cometido por favelados, se apresenta escandaloso. Isso nos faz encontrar, do mesmo modo e para além dos dispositivos sociais, o HOMEM na sua intimidade psíquica caótica, pessoal, intransferível e, às vezes, impenetrável aos dispositivos sociais, dobrados e quebrados, pela intensidade das emoções e pela ação de núcleos psicóticos.
Pensemos então, por alguns momentos, enquanto psicólogos "clássicos", a fim de não cairmos na vala de indiferenciação e do lugar comum, redutor profissional e de idéias.
Knobel, na sua SÍNDROME DA ADOLESCÊNCIA NORMAL, enfatiza que nesse período de desenvolvimento se entrelaçam dois lutos principais: o da perda do corpo infantil e o da perda dos pais idealizados.
Essas situações de perdas e o seqüente estado de luto levam os adolescentes a um "velório" prolongado, que procura conforto e identidade nas situações grupais vividas entre seus pares. A própria condição grupal, implica, de per si, na prática de ações regredidas praticadas contra a lei e a ordem "adultas" (condição não atingida), expressas freqüentemente nos limites da delinqüência - em rachas e roletas russas, grafitagem nos muros recém-pintados, "vamos zoar", surfar nos tetos de trens, enfrentamento de tribos à saída de bailes, etc.
Melanie Klein, em 1925, num artigo, estabeleceu a correlação entre certos pormenores de ações criminosas e o conteúdo de sonhos e do brincar infantis.
Pode-se agora ousar explicitar a hipótese de que há uma equivalência entre o queimar e o fazer xixi; aliás, se assim não fosse, onde iria parar a sabedoria popular que assinala "criança que brinca com fogo, faz xixi na cama"? e que eu entendo como sendo o brincar com fogo um modo de fazer o xixi que queima, arde e então (no pensamento/sentimento infantil) mata e faz desaparecer.
Tem-se então, não tão por acaso em Brasília, um grupo de adolescentes (portando um luto evolutivo - pelo menos), -com dificuldades de analisar o que procura (segundo os jornais, procuravam o que fazer durante toda a noite e madrugada), a bordo de um carro de família - o de uma mãe - (o terceiro da noite!!!) e que se depara com uma representação desse seu estar perdido e sem identidade, desse seu não pertencer a nenhum grupo socialmente reconhecido - como por exemplo, o do seus pais.
Nas suas andanças, esse grupo se encontra então com um OBJETO EXTERNO: um "mendigo" imerso no sono num banco público que, estando fragilizado e sem defesas no sono, retrata as fragilidades de cada um dos membros do grupo, suas impotências, sua pobreza intelectual e afetiva, seu estar à deriva e, num certo ângulo, conspurca a cidade/capital da qual seus pais são guardiães nomeados.
Lançado foi então no objeto externo (com atributos para isso), o OBJETO INTERNO persecutório, e aí emerge a possibilidade de alívio - à semelhança da criança que faz xixi quando está com medo ou a mercê do seu inconsciente no sono e esvazia, lança para fora de si, no jato de xixi, o que amedronta e não é possível conter dentro do limite da própria pele.
O grupo, como um só indivíduo no sentir e agir, atua de modo regredido e arcaico: impulsionado pelo caos interno, recorre ao mais primitivo dos mecanismos de defesa do ego: a projeção e faz desaparecer queimando vivo o mendigo/índio que, involuntariamente, sintetizou o sentir interno grupal, projetado agora no que está fora.
O grupo de adolescentes, onipotentemente, queima fora de si o sofrimento insuportável ocasionado pelas próprias fragilidades (não identificadas ou nomeadas), sofrimento que urgia (lembremo-nos que a noite estava no fim e com a luz do dia o grupo se desfaria, cada um para sua casa) ser eliminado a qualquer preço, queimando o inimigo que "suja" a "sua" cidade, pois para esta classe social foi projetada. O alívio foi fugaz, como nos fenômenos alucinatórios.
Trata-se, nessa leitura, de um fenômeno G (grupal), condição básica para esses adolescentes (e não necessariamente todos, ou outros, nessas ou em outras circunstâncias) cometerem o assassinato perverso e cruel e numa ação hedionda formalizarem a transgressão ao mandamento bíblico: não matarás - uma das primeiras ordenações sociais, que implicou, ao ser promulgada, no reconhecimento do que FREUD, posteriormente, denominou pulsão de morte, de finalidades destrutivas, intrínseca ao homem, num dos olhares psicanalíticos.
Estarei aqui pleiteando, num comentário escrito, que não vale a pena trabalhar-se preventivamente no campo formativo/educativo? NÃO!!!
Estou apenas escrevendo um comentário, já feito numa sala de aula, e que sinalize, que na compreensão dos fatos acontecidos, impõe-se que haja um olhar não redutor de que o mundo externo controla o mundo interno, pensar singular do PSICÓLOGO.
Notas e Referências Bibliográficas:
(1) Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica e Assistente-Mestre da PUC-SP.